Milionário desde o berço, Trump nasceu em reality show
SÉRGIO DÁVILA
EDITOR-EXECUTIVO
O ex-governador do Estado de Nova York Mario Cuomo disse certa vez que as campanhas eleitorais são poesia, e os governos, prosa.
Se a definição se aplicasse à disputa de Donald Trump pela Casa Branca, sua poesia seria rap —desbocado, nervoso, provocador—, e sua prosa, literatura de autoajuda —muitas promessas com pouco lastro real.
Não faltaram xingamentos e ofensas ao longo dos 16 meses em que o bilionário cruzou o país vendendo-se como bom gestor e político antiestablishment. O jornal "The New York Times" compilou 282 pessoas ou organizações atingidas no período pelos comentários negativos dele apenas em sua conta numa rede social.
Sobre a oponente democrata, Hillary Clinton: "Que mulher nojenta!"; sobre ela e o marido, o ex-presidente Bill Clinton: "Ela não consegue satisfazê-lo, como vai satisfazer os Estados Unidos?"; sobre Barack Obama: "O pior presidente da história dos EUA"; sobre a eleição presidencial: "Fraudada"; sobre a imprensa em geral: "Desonesta e enviesada".
Já suas promessas acenam com um país em que haverá menos impostos para todos e pleno emprego para trabalhadores de média ou baixa qualificação, os mais atingidos pela crise —mesmo que para isso ele tenha de alienar dois dos principais parceiros comerciais dos EUA, a China e o México.
Os novos postos de trabalho viriam basicamente de duas ações: expulsão dos 11 milhões de imigrantes ilegais que vivem nos EUA, seguida da construção de um muro na fronteira sul do país, e aumento substancial da tarifa de importação sobre produtos chineses.
O plano de governo prevê ainda aproximação maior com a Rússia de Vladimir Putin, mudança na política de contenção nuclear mundial praticada nas últimas décadas por Washington e tratamento do aquecimento global como um "boato inventado pela China".
A inconstância do que fala e o radicalismo do que defende fazem de Trump um candidato impossível, num partido improvável e —segundo as pesquisas de opinião mais recentes, que o aproximam de Hillary Clinton— numa colocação inesperada.
Donald John Trump nasceu em 14 de junho de 1946 no bairro do Queens, em Nova York, o quarto de cinco filhos de uma família de descendentes de alemães. Seu pai era um empreendedor imobiliário austero que fez fortuna construindo apartamentos populares subsidiados pelo governo do Estado.
Completou o ensino médio numa academia militar e formou-se na prestigiosa escola de finanças Wharton, na Universidade da Pensilvânia. Em 1975, ganhou US$ 1 milhão de seu pai (US$ 4,5 milhões em valores atualizados, ou R$ 14,4 milhões) para poder entrar ele próprio no ramo da construção civil.
Nos anos seguintes, ganhou e perdeu milhões em empreendimentos como as Trump Towers, prédios opulentos e dourados cujo exemplar mais conhecido está até hoje na Quinta Avenida, no coração de Manhattan, ou o cassino Taj Mahal, em Atlantic City (Nova Jersey), que faliu.
O tamanho de sua fortuna é objeto de polêmica. Rompendo com uma regra não escrita entre os postulantes à Casa Branca nas últimas décadas, Trump não tornou pública sua declaração de imposto de renda. Reportagens afirmam que ele deve cerca de US$ 700 mil (R$ 2,24 milhões) ao fisco, o que ele nega.
Em entrevistas e comícios, ele afirma frequentemente que seus bens somam US$ 10 bilhões (R$ 32 bilhões). Levantamento de setembro da revista "Forbes", no entanto, estima o total em pouco mais de um terço disso: US$ 3,7 bilhões (R$ 11,84 bilhões), uma queda de US$ 800 milhões (R$ 2,56 bilhões) em relação a levantamento da publicação do ano anterior.
Sua celebridade veio principalmente da série de reality show "The Apprentice", que ganhou uma versão brasileira, "O Aprendiz", na qual popularizou a frase de efeito "You are fired!" (você está demitido), usada para eliminar os aspirantes a um emprego em suas organizações a cada rodada da competição.
A fama veio também de suas companhias femininas, três das quais viraram suas mulheres, duas delas ex-modelos. Com a atual, a eslovena naturalizada americana Melania Trump, 24 anos mais jovem que ele, Trump casou-se em janeiro de 2005, numa festa à qual compareceu o casal Hillary e Bill Clinton. Com ela teve um filho, Barron, 10, o quinto dele e primeiro dela.
Mulherengo e sexista, Trump já chamou de "miss Piggy" uma competidora com peso acima da média do concurso de Miss Universo, do qual ele detinha os direitos. Em outubro, o jornal "The Washington Post" revelou um vídeo de 2005 em que Trump comenta, nos bastidores de uma entrevista, que agarra "as mulheres pela xoxota". E completa: "Quando você é famoso, elas deixam".
Desde então, várias mulheres vieram a público relatar desde atitudes consideradas machistas até casos de suposto assédio sexual envolvendo o candidato. Ele nega as acusações, e as atribui em grande parte ao que chama de viés da mídia contra ele e a favor de Hillary.
Paradoxalmente, pode ter sido a leniência inicial da mesma mídia um dos fatores que o fizeram chegar à reta final da corrida entre os concorrentes republicanos, ao mantê-lo abaixo do radar do escrutínio público, que só viria depois de se tornar o candidato oficial.
Segundo levantamento do centro de estudos de mídia Shorestein, da Universidade Harvard, enquanto era pré-candidato, Trump foi objeto de reportagens de teor preponderantemente positivo, enquanto seus oponentes sofreram o inverso.
Ao longo de 2015, de acordo com o estudo, Trump foi tratado como uma celebridade inofensiva por não ter chances reais de vitória, um personagem pitoresco que não deveria ser levado a sério.
Analisou-se o noticiário das emissoras CBS, NBC e Fox e dos jornais "The New York Times", "The Washington Post", "The Wall Street Journal", "USA Today" e "L.A. Times".
Se vitorioso na terça que vem, Trump será o primeiro neófito em política a ocupar a Casa Branca nos tempos modernos. Afinal, apesar de ter sido filiado aos dois partidos majoritários, Republicano e Democrata, bem como ao nanico Reformista, nunca exerceu cargo político ou público.
Outros pioneirismos atribuídos a ele são relativos. Em 1964, o senador Barry Goldwater também foi escolhido candidato republicano com uma plataforma radical. Abandonado igualmente pelos líderes de seu partido, acabou derrotado pelo democrata Lyndon Johnson.
E antes dele outro candidato já ameaçara não aceitar o resultado das eleições, caso perdesse. Em 1824, Andrew Jackson foi derrotado por John Quincy Adams, que se tornaria o sexto presidente dos EUA. Como Trump, ele também se dizia um "outsider", afirmando que o mundo político tinha se corrompido. Contestou por meses a vitória de seu oponente.
Numa analogia possível com o Brasil, pelos negócios polêmicos, as declarações disparatadas, a fama televisiva e o protagonismo do cabelo, Donald Trump candidato é o que seria Silvio Santos se o apresentador tivesse batido os caciques Geraldo Alckmin, Aécio Neves e José Serra numa hipotética prévia tucana e fosse escolhido o nome do PSDB para concorrer à Presidência do Brasil.
Já Donald Trump eleito não tem comparação, no Brasil ou no resto do mundo.