Processo penal coloca versão da vítima em xeque, dizem especialistas
DE SÃO PAULO
"Só temos a sua palavra e a palavra de Antônio. É natural que a emoção de hoje e, sobretudo, daquela noite deixe tudo nebuloso (...) Antônio a impediu de gritar?", quer saber o advogado. "Não", diz a vítima. "A senhora consentiu?", insiste o advogado. "Não", repete a mulher, em uma cena do filme "Um Crime Delicado", de Beto Brant (2005).
O mesmo roteiro de dúvidas sobre a versão da vítima surge nos processos e nas decisões judiciais analisadas pela socióloga Daniella Coulouris, em seu doutorado pela USP. A pesquisadora analisou 83 processos judiciais entre o seu mestrado e o doutorado. Em apenas 19 casos, houve condenações.
Para as vítimas de estupro, quando -após muitos obstáculos- o processo chega ao Judiciário, o drama continua. O discurso delas, outra vez, vai ser colocado em xeque.
Mais grave, mostram estudos, é que a violência de gênero não aparece no embasamento das decisões dos juízes. Os condenados são normalmente aqueles que cometem outras violências, além do estupro, como agressões por socos e pontapés. Ou que também roubam a vítima.
Em casos incestuosos, ou quando o criminoso é conhecido da vítima, mas tem bons antecedentes, a absolvição é praticamente uma certeza.
As mesmas perguntas que são vexatórias à vítima e que já haviam sido feitas a ela durante a investigação policial voltam a ser feitas no judiciário. Questionamentos como:"Houve conjunção carnal? Era virgem a paciente? Houve violência para esta prática? Qual o meio para esta violência? É a vítima alienada ou débil mental? Houve qualquer causa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir? Houve aborto?"
Não há quem resista, como mostra a socióloga em sua tese. Muito mais do que uma mera contabilidade de processos, o enredo dissecado pela pesquisadora escancara que a mulher e a menina que são vítimas de estupro, crime hediondo pela leis brasileiras, continuam sendo vítimas durante todo o processo.
"A mulher precisa provar que está sempre falando a verdade seja na Polícia ou no Judiciário", diz.
Além disso, durante a condução de uma investigação de estupro, o levantamento de provas é especialmente difícil. É comum, por exemplo, que agressores optem por modalidades de estupro que não deixem marcas em suas vítimas, ainda mais quando a vítima é criança e o agressor é de seu círculo de convivência.
Ainda que haja a conjunção carnal, é muito provável que um exame clínico não consiga detectar vestígios de sêmen, sangue, pelos pubianos ou de lesões na vítima. Pior, nesses casos, o exame acaba servindo como uma espécie de contraprova daquilo que a mulher está realmente dizendo.
Para a pesquisadora, por já saber deste jogo da "crença e da descrença" vivido nos tribunais, é que muitas das optam por não denunciar os seus agressores, se esquivando de ir ao Judiciário.
Já segundo a promotora Valéria Diez Scarance Fernandes, o problema pode ir além. Com medo de relembrar detalhes do crime no Judiciário e a pressão por ter sua versão sempre posta em dúvida, vítimas de estupro podem simplesmente mudar o relato feito à Justiça no intuito de desistir do processo.
A mulher precisa provar que está sempre falando a verdade seja na Polícia ou no Judiciário