Casos de estupro sem registro no país podem chegar a 90%
DE SÃO PAULO
"Resolvi me preservar e me cuidar ao invés de gritar para surdo ouvir", diz a estudante de jornalismo Carolina Ribeiro, referindo-se ao Boletim de Ocorrência que não registrou. Há pouco mais de um mês, ela foi atacada por três homens nas imediações da PUC, em Perdizes, bairro de classe média da zona oeste paulistana.
No site do VOA –coletivo feminista da universidade– ela relatou a agressão: "O maior deles me segurava e fez o que sentiu vontade, com meu vestido levantado. Não, não houve penetração! Apanhei, fui tocada e, por sorte, tudo não demorou muito tempo para acabar".
"Não acho que fiz o que 'deveria ser feito': antes de ser comigo, sempre defendi o oposto. Temos, sim, que denunciar qualquer tipo de agressão. Optei apenas por fazer de uma outra maneira: problematizar é necessário", afirma.
Por enquanto, seu caso vai se somando aos cerca de 450 mil que todos os anos não são denunciados -por diversos motivos. A estimativa de estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) é que mais de 500 mil estupros ocorram por ano no Brasil.
Entre o pouco que é registrado, segundo a pesquisa, mais de 70% das vítimas são crianças e adolescentes. Os agressores em 24% das vezes: seus próprios pais ou padrastos. Em 32% dos casos: amigos ou conhecidos.
Tantos dados podem se traduzir em: quanto menor a chance da vítima ser capaz de denunciar o agressor, maior a probabilidade do estupro voltar a ocorrer. Ou ainda, quando a vítima é uma criança ou adolescente e o agressor é conhecido, em quase 50% dos casos registrados o estupro é reincidente.
Para a socióloga e consultora em políticas de gênero Wânia Pasinato, da ONU Mulheres, nada no plano apresentado nesta semana pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, após a repercussão do caso de estupro coletivo no Rio, é capaz de mudar esse quadro.
Marlene Bergamo/Folhapress | ||
Atacada em frente à PUC, Carolina Ribeiro ainda não foi à polícia fazer registro do crime |
Entre outros pontos, o plano prevê o pagamento de diárias a policiais militares estaduais e policiais da Força Nacional de Segurança para em dias de folga, atuarem em áreas de maiores índices de violência doméstica.
Segundo Wânia, esta não é uma abordagem integral, que visa apenas apenas a identificação dos responsáveis e a sua punição, mas não a proteção das mulheres vítimas de violência."É vergonhoso um ministro da Justiça chegar com uma proposta dessa. Fazer essa proposta é [coisa] de alguém que viveu em outro planeta nos últimos 30 anos", diz.
Vítimas com menor autonomia para denunciar, mais expostas à repetição da violência, mais casos que não chegarão a ser investigados.
A miséria humana mascarada pela subnotificação pode ir além. Estupros de meninas entre 14 e 17 anos resultam em maiores chances de gravidez se comparadas a mulheres adultas. A probabilidade de terem acesso ao aborto legal, no entanto, é menor.
Crianças ou adultas, estão sujeitas às mesmas consequências de longo prazo: depressão, fobias, ansiedade, abuso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático.
"Muitas vezes elas não querem nem mais a denúncia, querem só serem ouvidas e acolhidas", afirma a coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Ana Paula Lewin.
Quando muitos dos casos chegam até seu escritório no centro de São Paulo é porque na delegacia essas vítimas não encontraram o tratamento necessário. "Elas não acreditam na Justiça", diz a defensora.
Uma pesquisa realizada em 2015 com 350 processos no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul mostra o tamanho da dificuldade para se quebrar o silêncio. Em 61% dos casos, a denúncia só foi feita após mais de um ano decorrido do estupro. Quase 80% das vítimas tinham até 13 anos.
"Em 90% dos casos, o estupro não deixa marcas físicas que possam servir de provas", diz o desembargador José Antônio Daltoé Cezar, coordenador do estudo. "Penso em registrar o boletim, certamente, quando estiver me sentindo mais confortável para responder perguntas estupidas", diz Carolina.
Resolvi me preservar e me cuidar ao invés de gritar para surdo ouvir