O pós-Mao

Triunfo do pragmatismo

GUILHERME MAGALHÃES

Os 11 anos de Deng Xiaoping à frente do Partido Comunista Chinês, entre 1978 e 1989, podem ser sintetizados em uma famosa frase do ditador, supostamente dita em 1962, quando o regime tentava corrigir os erros catastróficos (sem admiti-los) do Grande Salto Adiante de Mao: "Pouco importa se o gato é preto ou branco, o importante é que ele cace os ratos".

Pragmático, Deng foi o responsável por conduzir a China a uma era de modernização e de abertura econômica. Para isso, se aproveitou da normalização das relações com os Estados Unidos a partir de 1972, realizada ainda por Mao.

"Ele usou o que Mao abriu, mas usou economicamente, para exportar bens para o Ocidente, para desenvolver a economia chinesa e conter a União Soviética", afirma John Garver, do Instituto de Tecnologia da Geórgia (EUA) e autor de "A Busca da China: A História das Relações Exteriores da República Popular da China" (2015, sem edição no Brasil).

Qian Sijie/Xinhua
Deng Xiaoping, sucessor de Mao no comando da China, discursa na ONU em abril de 1974
Deng Xiaoping, sucessor de Mao no comando da China, discursa na ONU em abril de 1974

O relativo aumento nas liberdades individuais dos chineses, em comparação ao período de Mao, ajudou a construir o mito de um líder preocupado em corrigir abusos do regime.

"No Ocidente, o principal mito sobre Deng é o de que ele era um liberal e um reformista de coração, e que o 4 de junho de 1989 foi uma aberração em relação ao seu jeito de governar", diz Steven Levine, historiador americano e coautor da biografia "Deng Xiaoping: Uma Vida Revolucionária" (2015, sem edição no Brasil).

Ele se refere ao massacre da Praça Tiananmen (Paz Celestial), quando Deng reprimiu violentamente protestos de milhares de estudantes por mais democracia. As manifestações produziram a icônica fotografia do homem que se colocou em frente a quatro tanques do Exército chinês.

"Na verdade, Deng era um linha-dura, comprometido com o uso da força e repressão para lidar com inimigos, intolerante a dissidentes, desconfiado de intelectuais. Apenas em relação à necessidade de uma reforma econômica ele se distanciou do modelo maoista, e mesmo assim com cautela no início, determinado a manter o monopólio do poder do Partido Comunista Chinês", afirma Levine.

Passados os anos de caos social em que a China estava mergulhada durante a Revolução Cultural, era necessário, antes de tudo, assegurar a estabilidade do Partido, em frangalhos depois dos constantes expurgos de Mao.

"Deng preservou o regime de partido único quando ele pareceu estar muito vulnerável. Restaurou a estabilidade do Partido Comunista, mas também descartou muito da sua ideologia central. Por isso muitos se perguntam se o partido pré-1978 é o mesmo partido pós-reformas de Deng", afirma Kerry Brown, professor de estudos chineses no King's College, em Londres.

Ed Nachtrieb/Kim Kyung-Hoon/Reurters
A combination picture shows people filling Tiananmen Square in front of the Mausoleum of late Chinese chairman Mao Zedong and the Monument to the People's Heroes in Beijing, May 17, 1989 (top) and cars passing the same place May 31, 2016. REUTERS/Ed Nachtrieb/File Photo and Kim Kyung-Hoon (bottom) ORG XMIT: DSB03
Chineses lotam a praça da Paz Celestial, em Pequim, em frente ao Mausoléu de Mao, em 1989

A forma que ele encontrou para fazer isso foi, paradoxalmente, abrir a economia. Conforme o pensamento de Deng, se as pessoas obedecerem lealmente o Partido, este permitirá a elas a autonomia e as oportunidades para enriquecerem.

Isso, segundo Garver, se mostra uma clara ruptura em relação a Mao. Deng abandona a ideia de transformar o chinês em um "novo homem", apropriado para a construção de uma sociedade comunista de acordo com a liturgia marxista-leninista. Bastava que as pessoas obedecessem ao Partido.

De acordo com Garver, é errado olhar da perspectiva americana para o nível de liberdade individual da China sob Deng, já que a comparação sempre irá favorecer os EUA, país de democracia consolidada. O paralelo a ser feito deve ser com a China de Mao, extremamente autoritária em relação a todos os aspectos da vida cotidiana.

"Um abandono do socialismo autoritário ao estilo maoista era quase inevitável, devido ao estado de caos político, pobreza, atraso e caos nas relações exteriores da China deixado como legado por Mao", afirma Levine. A única questão seria o ritmo da mudança.

O historiador traça um paralelo com a "ruptura" observada na União Soviética após a morte do ditador Josef Stálin, em 1953.

Stringer/Reuters
A Beijing citizen stands in front of tanks on the Avenue of Eternal Peace in this June 5, 1989 file photo during the crushing of the Tiananmen Square uprising. June 4 marks the 25th anniversary of the suppression of pro-democracy protests in Tiananmen Square in 1989. Picture taken June 5, 1989. REUTERS/Stringer/Files (CHINA - Tags: POLITICS CIVIL UNREST ANNIVERSARY) ORG XMIT: PEK09
Icônica foto dos protestos da praça da Paz Celestial, quando um jovem se colocou à frente de tanques do regime, em 1989

"Assim como a morte de Stálin levou a mudanças iniciadas por antes fiéis stalinistas como Nikita Khruschev, na China foram maoistas como Deng Xiaoping que reverteram muitas das políticas do ditador morto enquanto permaneciam fieis ao núcleo interno do maoísmo, especialmente o monopólio de poder do Partido."

Deng também reabilitou a herança da China imperial, que Mao havia rejeitado durante os anos pré-Revolução Cultural por considerá-la "feudal e contrarrevolucionária".

Aposentado em 1989 e morto em 1997, Deng não ouviu críticas enquanto estava vivo. A liderança pós-Deng também não demoliu suas políticas.