Marcas presentes
DANIEL BUARQUE
A manutenção da ditadura do Partido Comunista na China até hoje pode ser vista como legado da Revolução Cultural, encerrada quatro décadas atrás.
Isso porque os expurgos e o terror criados por aquele momento subverteram o conceito de democracia no país, segundo o historiador holandês Frank Dikötter, professor da Universidade de Hong Kong e autor de três livros sobre a China de Mao.
"Para o Partido Comunista, a democracia é o mesmo que a Revolução Cultural. É o caos, anarquia, um sistema perigoso para o partido, que precisa ser reprimido constantemente", explica Dikötter à Folha.
A Revolução Cultural é responsável pelo que ele chama de "situação esquizofrênica" da China de hoje, na qual as pessoas têm alguma liberdade comercial, mas nenhum direito democrático básico —uma dicotomia entre alguma liberdade econômica e repressão política, afirma o historiador.
"Mao incentivou as pessoas comuns a atacarem e criticarem membros do partido. Ele usou o povo para controlar o partido, e este partido associou a voz do povo à perseguição. Por isso pretendem não deixar que isso volte a acontecer. É por isso que temos tanta repressão a aspirações políticas do povo até hoje", diz.
Dikötter explica que isso tudo faz parte do grande impacto da Revolução Cultural. Trata-se de um evento altamente traumático para o país, mesmo que tenha deixado menos mortos do que outros episódios.
"Se olharmos para número de mortes, a Revolução Cultural é ofuscada em comparação com outros episódios de terror do partido comunista chinês. Por outro lado, se observamos o trauma, a perda de fé e confiança em relações humanas, e o medo gerado, sem dúvida a Revolução Cultural é pior".
Ele explica que todas as pessoas da China, do partido ou não, de uma forma ou de outra foram vítimas da Revolução Cultural. "Mas não foi uma questão de morte, foi uma questão de medo, que traumatizou o país."
PRESSÃO
O Estado ditatorial e a ausência de liberdades individuais, segundo Dikötter, se refletem até hoje também na produção acadêmica chinesa.
Por mais que as universidades do país tenham passado por uma transformação desde que foram fechadas e expurgadas, elas ainda carregam marcas do totalitarismo.
"A China é um Estado de partido único, dominado pelo sistema comunista, o que significa que há restrições constantes impostas a acadêmicos", diz. "A ideia de que estamos vendo uma China que está se abrindo gradualmente é um mito completo."
Segundo o historiador, nos últimos 40 anos houve momentos de relativa abertura alternados com ataques à liberdade acadêmica e das universidades. Desde 2012, porém, ele avalia que a repressão aumentou.
O professor Michael Schoenhals, do departamento de estudos chineses na Universidade de Lund, na Suécia, minimiza, entretanto, os efeitos da Revolução Cultural na academia chinesa.
"Os professores ativos hoje, em sua maioria, não eram nem nascidos ou eram muito novos, na época. Então, em termos de pessoal, não há nenhum efeito a não ser indireto. As universidades se recuperaram rapidamente, e vários dos problemas que elas enfrentam hoje não têm nada a ver com a Revolução Cultural."
"Não há mais sofrimento como efeito da Revolução Cultural", disse. "Quase todos os problemas enfrentados pelo povo chinês hoje são resultados do que aconteceu nos 40 anos de reforma desde então", avalia Schoenhals.
Dikötter faz avaliação parecida, embora mais crítica.
"Claro que não podemos comparar a situação das universidades na China hoje com o que houve sob Mao, mas ainda é preciso passar por um grande nonsense ideológico no país. Acadêmicos ainda são forçados a estudar a ideologia marxista, ainda têm que seguir a ideologia do Partido e ainda há áreas de pesquisa proibidas."
Segundo ele, mesmo a ideia de que algumas áreas sofrem pressão maior do que outras, e que há maior liberdade às ciências exatas, é um mito.
"A China é controlada por um partido. Isso significa que em toda unidade, de cada fábrica, cada escola, cada empresa, há um secretário do Partido, que é a pessoa que decide o que pode e o que não pode ser feito", diz.
"Em outras palavras, mesmo pessoas que fazem parte de departamentos de engenharia elétrica de universidades na China seguem suas regras. Não são engenheiros eletrônicos que tomam as decisões, são secretários de partido. Todo o poder está nas mãos do partido, e esse partido constantemente esmaga qualquer coisa que esteja fora dele. Não há uma organização civil, ou direitos civis."