Grávida fiel

Com filho na barriga, torcedora viajou de madrugada para ver o Corinthians

NAIEF HADDAD
DE SÃO PAULO

"Eu estava grávida de dois meses, e meu filho seria o primeiro neto dos meus pais e o primeiro dos meus sogros. Quando decidi ir ao jogo do Corinthians no Maracanã, me coloquei contra a vontade de todos. Achavam que era uma irresponsabilidade nossa", conta a dona de casa Marlene Hermann, que tinha à época 20 anos.

Moradora do bairro de Pirituba, na zona norte de São Paulo, Marlene foi à semifinal do Brasileiro de 1976, o jogo entre Corinthians e Fluminense, com o marido, Heinz, o cunhado Heli e a mulher dele, Célia.

Até mesmo Cláudio, um amigo são-paulino, se entusiasmou com a viagem e acompanhou o grupo pela Dutra –rodovia de de 402 km, que liga São Paulo e Rio de Janeiro– numa Brasília vermelha.

Fabio Braga/Folhapress
Marlene Hermann, que esteve na
Marlene Hermann, que esteve na "invasão", ao lado do filho, Franz, no bairro de Pirituba, na zona norte de São Paulo

"Se a gente tivesse parado pra pensar, teria percebido que era mesmo uma irresponsabilidade. Mas o Corinthians merecia, não é mesmo?"

De carro, ônibus, avião, até mesmo de bicicleta, dezenas de milhares de moradores da capital paulista resolveram ir ao Rio na semana que antecedeu a partida.

Foram pelo menos 13 voos extras na ponte aérea entre 3 e 5 de dezembro de 1976.

A montadora Volkswagem providenciou 15 ônibus para levar gratuitamente seus funcionários ao Rio. A cooperativa de crédito da fabricante de tratores Massey Ferguson organizou uma excursão, que teve dois ônibus lotados.

Não só as empresas se mobilizaram pra promover o deslocamento dos corintianos. A direção do clube também fretou dez ônibus, mesma quantidade de veículos reservados pela Federação Paulista de Futebol.

Com receio de que o caos se instalasse ao longo dos 402 km da via Dutra, o Distrito Rodoviário Federal e o Detran do Rio montaram a Operação Corinthians.

Foram convocados 300 policiais para o fim de semana, além dos que já trabalhariam normalmente naquelas datas. A operação vetou a passagem de caminhões de carga pela rodovia.

Marlene e sua turma deixaram São Paulo por volta de meia-noite de sábado e chegaram ao Rio às 8h. O fluxo lento tornava ainda maior a ansiedade dela.

"Na Dutra, só víamos carros com placa de São Paulo. Todos com bandeiras do Corinthians, trocando cumprimentos, como se todos se conhecessem", lembra Marlene. "A gente parava nos restaurantes à beira da estrada e todos estavam repletos de corintianos, sabe? Parecia uma família".

Mas não só da cidade de São Paulo saíam os torcedores rumo ao Rio. Vinte ônibus deixaram Sorocaba em direção à capital fluminense, número igual ao dos que partiram de Campinas.

Segundo Igor Ojeda, autor do livro "A Invasão Corinthiana", houve uma "catarse coletiva, como o show dos Rolling Stones em Copacabana [em fevereiro de 2006]".

Muitos torcedores, segundo ele, viajaram ao Rio mesmo sem ingressos. A maioria, no entanto, conseguiu comprar nos guichês do estádio.

6.dez.1976/Folhapress
O goleiro corintiano Tobias (à esq.) na chegada a São Paulo após a classificação
O goleiro corintiano Tobias (à esq.) na chegada a São Paulo após a classificação

'CIDADE OCUPADA'

A avenida Atlântica, em Copacabana, estava tomada por corintianos desde a noite de sexta, dia 3.

Para o incômodo de moradores de bairros como Ipanema e Leblon, os torcedores soltavam rojões e repetiam gritos de guerra, conforme registra o livro de Ojeda e Tatiana Merlino.

Hotéis de algumas regiões da cidade, como o centro, ficaram totalmente ocupados.

"Ninguém sabia, ninguém desconfiava. O jogo começou na véspera, quando a Fiel explodiu na cidade", escreveu Nelson Rodrigues em crônica publicada em "O Globo". "Nunca uma torcida invadiu outro Estado com tamanha euforia. Um turista que por aqui passasse havia de anotar no seu caderninho: 'O Rio É uma Cidade Ocupada'", concluiu.

Para Marlene, hoje com 60 anos, a palavra que melhor define aqueles momentos que precediam o jogo é "farra". "Não parecia que estavam indo a um jogo, mas a uma grande festa. Só quem viveu sabe".

4.dez.1976/Folhapress
Opala com torcedores do Corinthians chega a Copacabana, no Rio
Opala com torcedores do Corinthians chega a Copacabana, no Rio

6 KM DE ÔNIBUS

Os jogadores do Corinthians, por sua vez, não tinham uma noção clara da mobilização que se formava em torno deles.

Desde a sexta à noite, a delegação estava hospedada no hotel Nacional, em São Conrado (zona sul), local que deixaram apenas uma vez, no sábado, para treinar.

Os atletas mal assistiam ao noticiário na TV e, mesmo se o vissem, pouco saberiam sobre a "invasão". As emissoras cariocas estavam menos atentas à chegada dos torcedores do que as paulistas.

O então goleiro titular do Corinthians, Tobias, notou uma movimentação anormal quando desceu para o saguão do hotel no domingo, dia 5, para o café da manhã. Mas não era algo que lhe chamasse a atenção especialmente.

"No caminho do hotel para o Maracanã, vimos três, quatro, 30 ônibus vindos de São Paulo. Caramba! Percebemos que eram mais torcedores do que a gente imaginava", recorda-se Tobias.

"Os ônibus não chegavam ao fim, 40, 50... 'Alguma coisa está errada', pensamos. Eram seis quilômetros de ônibus com corintianos".

Não é exagero dizer que os torcedores travaram uma área expressiva do Rio. Em pleno domingo, o entorno do estádio, na região norte da cidade, registrou um engarrafamento de 10 km.