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Jejum de títulos e sagacidade dos cartolas impulsionaram invasão

NAIEF HADDAD
DE SÃO PAULO

"Das 170 mil pessoas que deverão assistir ao jogo Corinthians versus Fluminense, hoje no Maracanã, calcula-se que cerca de 70 mil serão corintianos, deslocados de São Paulo –um acontecimento inédito na história do maior estádio do mundo, que nunca abrigou tão grande número de torcedores de clubes de outros Estados, adversários dos times locais."

Era assim o primeiro parágrafo do texto no alto da Primeira Página da Folha de 5 de dezembro de 1976, quatro décadas atrás.

"Eles estão chegando de ônibus, de trens, de aviões ou carros particulares, desfraldando a bandeira do seu time e percorrendo ruidosamente as ruas de Copacabana e das áreas centrais da cidade", continuava.

Até então, os jornais informavam que 50 mil corintianos iriam ao Maracanã para assistir à semifinal do Campeonato Brasileiro.

Ao longo do fim de semana, porém, o gigantismo da invasão ficou mais evidente. A estimativa passou a ser 70 mil, número que entrou para os livros de história do futebol brasileiro.

Não são poucos, porém, os estudiosos e jornalistas que acreditam que eram mais de 80 mil torcedores do time paulista no estádio carioca.

Seja um número ou outro, o Brasil nunca havia tido um deslocamento tão grande de torcedores para um jogo em outro cidade, com o rival como mandante.

Nesses últimos 40 anos, um acontecimento como esse não se repetiu no futebol brasileiro. E muito provavelmente jamais ocorrerá novamente.

O que, afinal, explica esse fenômeno? Para o jornalista Igor Ojeda, autor do livro "Invasão Corinthiana", um fator isolado não seria capaz de resultar em um evento dessa magnitude.

Para ele, que escreveu o livro com a também jornalista Tatiana Merlino, há pelo menos seis razões que confluíram no episódio. O autor não indica, contudo, uma ordem de importância entre elas, que estão descritas abaixo.

1 - RAÍZES CORINTIANAS

"O fato de ter sido a torcida do Corinthians é um ponto importante. Se os mesmos fatores convergissem e estivessem associados a uma outra torcida, eu acho que não aconteceria uma invasão como essa", afirma o autor.

De acordo com Ojeda, o "Corinthians já nasceu como um fenômeno sociológico". Ao surgir em 1910, "não era o único time de operários, mas foi a equipe que decolou, que deu certo, do ponto de vista profissional". O clube serviu como contraponto aos principais times da época, apoiado pelos quatrocentões da cidade, como o Paulistano.

Inicialmente a torcida do time reunia imigrantes ou descendentes de imigrantes, como os espanhóis, que trabalhavam nas indústrias paulistanas. Viviam principalmente no Bom Retiro.

Nas décadas seguintes, a torcida se fortaleceu com a adesão dos nordestinos que chegavam a São Paulo, além dos negros, que também apoiavam o time de modo crescente.

Criou-se, portanto, uma forte identificação do Corinthians com esses setores da população, acentuando características da torcida, como a vibração e a fidelidade.

O que ocorreu em 1976, portanto, pode ser visto como o ápice de um processo iniciado 66 anos antes.

2 - FILA DE TÍTULOS

Havia mais de 21 anos que o time não ganhava troféus importantes. O último título de peso remetia a fevereiro de 1955, quando conquistou o Campeonato Paulista referente ao ano anterior.

Para aumentar ainda mais a expectativa da torcida, dois anos antes, em 1974, o Corinthians havia perdido para o Palmeiras em uma final no Morumbi em que era tido como favorito. O mal-estar que se instalou no clube provocou a saída de Rivellino.

O jogo contra o Fluminense era o passo derradeiro antes de alcançar a final, o que ampliava a ansiedade da torcida. Curiosamente, do outro lado do campo, estaria logo ele, Rivellino, que havia atuado pelo Corinthians por uma década, entre 1965 e 1974.

3 - ARRANCADA FINAL

O Corinthians começou mal o campeonato, que era dividido em fases. Na terceira etapa, porém, conseguiu embalar. Mas a classificação dependia de uma proeza: não apenas precisava ganhar os cinco jogos, como era necessário obter pontos extras.

Naquela época, uma vitória simples valia dois pontos, mas um trunfo por dois gols ou mais de diferença rendia três.

Não perca a conta: 2 a 1 contra o Botafogo de Ribeirão Preto, no Pacaembu; 4 a 1 contra o Caxias, em partida realizada no Rio Grande do Sul; e 2 a 0 contra a Ponte Preta, no Pacaembu.

O rival do quarto jogo foi o Internacional, cuja vaga estava praticamente garantida. Na partida contra o time gaúcho, campeão brasileiro do ano anterior, o Morumbi recebeu mais de 120 mil torcedores. Vitória corintiana por 2 a 1.

No quinto e último jogo da série, o time paulistano tinha como rival o Santa Cruz, de Recife, para onde foram organizadas excursões a partir de São Paulo. De acordo com Ojeda, pelo menos 3.000 corintianos foram à capital pernambucana.

Uma derrota ou um empate seriam fatais, mas a equipe venceu por 2 a 1 e chegou à semifinal. O adversário seguinte seria o Fluminense, time conhecido como a "Máquina Tricolor".

4 - JOGO ÚNICO

"Se a semifinal fosse disputada em dois jogos, provavelmente não aconteceria a invasão. Não naquela magnitude. A tendência é que o ânimo dos torcedores arrefecesse um pouco", acredita o autor. "Mas era um jogo só, e o Corinthians precisava ganhar para passar à final."

Além disso, Ojeda destaca o peso do adversário. Àquela altura, o Fluminense era provavelmente o segundo melhor time do Brasil, com nomes como Rivellino, Carlos Alberto Torres e Paulo César Caju. Só estava um degrau abaixo do Inter, de Falcão e Figueroa.

5 - PROVOCAÇÕES

"Que os vivos saiam de casa e os mortos saiam das tumbas para torcer pelo Corinthians no Maracanã porque o Fluminense vai ganhar a partida", anunciou Francisco Horta, então presidente da equipe tricolor, nos dias que antecederam a semifinal.

Horta propôs a Vicente Matheus, que comandava o Corinthians, que se unissem em ações para promover o jogo. Foram a TVs e rádios, onde soltavam frases de efeito.

"O Corinthians vai ter no Maracanã seu Waterloo. E nós vamos dizer ao Corinthians, como disseram a Napoleão: 'Tenho a honra de derrotá-lo'", disse Horta a um ouvinte na rádio Jovem Pan.

Diferentemente do folclórico Vicente Matheus, Horta era um homem culto e discreto. Mas ele se entusiasmou nessa campanha pela promoção do jogo e assumiu outra persona, que se sentia à vontade com essa troca de farpas.

Para o colunista da Folha Juca Kfouri, à época chefe de reportagem da revista "Placar", as provocações de Horta foram o fator que mais impulsionou a ida de corintianos ao Rio.

6 - MÍDIA

Não faltam exemplos de como veículos de comunicação, agências de publicidade e empresas de São Paulo se envolveram com a realização do jogo, ampliando o entusiasmo dos torcedores.

O locutor Osmar Santos disse à revista "Veja" que foi nessa época que a Jovem Pan decidiu deixar de ser uma rádio para a classe média (como é hoje a CBN) para se tornar um veículo de inclinação mais popular.

No domingo do jogo, a Folha dedicou um caderno de 12 páginas à semifinal.

Bancos como Bradesco e Caixa lançaram peças de publicidade ligadas ao jogo, que foi transmitido por todas as TVs paulistas da época.

Em anúncio de página inteira nos principais jornais de São Paulo, a General Motors pedia: "Só vai ver o Corinthians campeão quem for vivo. Neste fim de semana, dirija com muito cuidado na Dutra".

Naqueles dias, era impossível ao paulistano se manter indiferente ao jogo.