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A história que a rua escreveu

Como um valentão criou uma nova forma de pular o Carnaval

Arquivos da Justiça ajudam a reconstruir trajetória de Hilário Jovino, criador do 1º rancho carnavalesco do Rio

MAURÍCIO MEIRELES
DE SÃO PAULO

Samba era caso de polícia. E é graças a esse fato que é possível ter uma ideia mais concreta de como foram suas origens —há registros nos arquivos da Justiça.

Foi assim que Lira Neto conseguiu reconstruir os passos —gingados, certamente— de Hilário Jovino Ferreira, o fundador do Reis de Ouro, considerado o primeiro rancho carnavalesco —uma espécie de bloco— do Rio.

"Como ninguém imaginava o que seria o samba, quase não há fontes escritas. O fato de ter sido criminalizado até ajuda. É preciso ler os documentos da polícia, mas sem dar (muito) crédito a eles, porque eles têm seu viés", diz Lira Neto.

Pernambucano, aprendiz de estaleiro na Bahia, foi transferido para o Rio em 1892, para trabalhar como carpinteiro. Ficou perto da Pedra do Sal, onde antes da abolição havia um mercado de escravos —e hoje há uma das principais rodas de samba da cidade.

À época, existiam os ranchos de reis —cortejos com festa na véspera do 6 de janeiro, para relembrar os reis magos. Hilário Jovino fazia parte do Dois de Ouro, mas logo saiu de lá para fundar o Reis de Ouros, que fez desfilar até o Carnaval, como ocorria na Bahia.

Ele comprou, de acordo com a pesquisa de Lira Neto, dois cortes de seda —um verde, outro amarelo— para fazer o estandarte.

Aproximou a música da sonoridade africana, incluindo pandeiros, tantãs e ganzás na formação da banda. A porta-estandarte chamava-se Joana do Passinho.

Surpreendentemente, as autoridades gostaram.

Com a origem religiosa, os ranchos pareciam mais disciplinados do que os cordões, que faziam guerras de farinha e bisnagas com urina, lama e outros líquidos duvidosos. Em 1894, o Reis de Ouro chegou a desfilar diante do presidente da República, o marechal Deodoro da Fonseca.

"Os primeiros ranchos precisavam registrar seu estandarte e pedir autorização na delegacia para desfilar. Já havia ali uma relação dialética que não pode ser resumida em opressor e oprimido. É isso que tento mostrar no livro", diz Lira Neto.

Hilário Jovino podia até desfilar na frente do presidente, mas arrumava encrenca com a autoridade.

Em 1902, o senhorio foi lhe cobrar o aluguel atrasado. Como resposta, só escutou: "Eu vou lhe pagar é com bala!". Numa cena em que foge, se engalfinha com um policial, se esconde na casa de um babalorixá, dá golpes de capoeira —e acaba em cana.

Como andava com um revólver Smith & Wesson (carregado com cinco balas), ainda foi preso não só por ameaça e lesão corporal mas por porte ilegal de arma de fogo.

MALANDRO É MALANDRO

Mas malandro é malandro, mané é mané —e, com seus contatos, saiu da prisão no dia seguinte.

A história do bamba se mistura com a controvérsia longeva sobre "Pelo Telefone" —hoje marco dos cem anos do samba, a canção suscita debates sobre sua autoria.

A música não seria de Donga, mas uma criação feita de forma coletiva na casa de Tia Ciata, mãe de santo e quituteira mítica para a história do ritmo, em cuja casa aconteciam famosas rodas.

O malandro Hilário seria um dos autores da música.

Uma paródia publicada na imprensa até dizia: "Ó, que caradura/ De dizer nas rodas/ Que este arranjo é teu!/ É do bom Hilário!/ E da velha Ciata/ Que o Sinhô escreveu".

"A noção de autoria é da modernidade, um valor da produção capitalista. O samba é uma criação coletiva, sem gênios iluminados. No momento de surgimento do samba, ainda não se fala disso. [O registro de 'Pelo Telefone'] é o momento em que isso surge no samba", conclui Lira Neto.

Como ninguém imaginava o que seria o samba, quase não há fontes escritas. O fato de ter sido criminalizado até ajuda, nesse sentido. É preciso ler os documentos da polícia, mas sem dar (muito) crédito a eles, porque eles têm seu viés

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