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A história que a rua escreveu

Como um pai de santo fez o primeiro concurso de escolas de samba

Com documentos inéditos, Lira Neto contará história do samba e resgatará personagens obscuros

MAURÍCIO MEIRELES
DE SÃO PAULO

Esta história está cheia de capoeiristas, bêbados, malandros, valentões, estivadores —e foi escrita nas ruas, entre a festa e a repressão.

Esta história tem um homem de rosto magro, cheio de cicatrizes de varíola, com seu paletó e chapéu de palha -e que sabe fazer mandingas, rezas brabas.

O homem é José Gomes da Costa, o Zé Espinguela, pai de santo (na verdade, um alufá, sacerdote do culto malê), que promoveu o primeiro concurso de escolas de samba, em 1928.

O morador do morro do Quitungo, no Irajá, subúrbio do Rio, é um personagem importante -e do qual a bibliografia do samba falou sem muitos detalhes.

Mas ele volta a tempo do Carnaval. É quando Lira Neto, o biógrafo de Getúlio Vargas, pretende lançar o primeiro de três volumes sobre a aventura do ritmo, pela Companhia das Letras.

Neste domingo (27), completam-se cem anos do registro de "Pelo Telefone", de Donga e Mauro de Almeida, na Biblioteca Nacional —primeira música a fazer sucesso como samba. Embora, diga-se, hoje pesquisadores concordem que ela está mais próxima do maxixe.

Com pesquisa em documentos inéditos e na imprensa da época, Lira Neto conseguiu reconstruir a história de Espinguela e de outra figura tão importante quanto obscura na trajetória do ritmo, Hilário Jovino Ferreira, fundador do primeiro rancho carnavalesco do Rio.

Claro, sem esquecer os heróis do gênero, como João da Baiana, Sinhô e Pixinguinha.

"O grande desafio dessa primeira fase (as origens do samba) é que tudo está muito calcado na tradição oral. Não existia nada do Espinguela nos arquivos da Justiça. Se ele fazia, fazia muito bem", ri Lira Neto.

Divulgação
Zé Espinguela faz uma fantasia, em 1940
Zé Espinguela faz uma fantasia, em 1940

PRIMEIRO CONCURSO

Da pesquisa, saíram descobertas. Até hoje, acreditava-se que o primeiro concurso de escolas de samba havia acontecido em 1929, organizado por Espinguela. Mas, na verdade, há registros na imprensa da época de um concurso anterior, em 1928 —organizado pela mesma figura. É o que diz o jornal "A Manhã", em 14 de fevereiro daquele ano:

"Debaixo de um ambiente de franca alegria, realizou-se no domingo último nos salões da Estrela D'Alva a homenagem que um grupo de boêmios inveterados [...] ofereceu à Embaixada do Estácio em regozijo pela vitória alcançada num concurso de samba havido no Engenho de Dentro."

"Embaixada" é um nome anterior de escola de samba. Naquela farra, a trupe do Estácio se refestelou com porco assado e macarronada.

Zé Espinguela torcia abertamente pela Mangueira -mas tinha o respeito dos demais. E a confusão quanto à origem das disputas entres escolas -à época, ainda não eram desfiles- é culpa dele mesmo.

"Foi em 1929 [...]. Realizei no Engenho de Dentro. Sagrou-se vencedora a Portela, sabiamente dirigida pelo Paulo. Mangueira também se apresentou pujante. tendo os seus sambistas Cartola e Arturzinho apresentado dois sambas monumentais", disse o pai de santo em uma entrevista de 1935.

Os dois sambas da Mangueira eram "Beijos" e "Eu Quero É Nota" -não há detalhes sobre os outros, mas admite-se que o vencedor foi "Não Adianta Chorar", de Heitor dos Prazeres.

Pouco se sabe sobre Espinguela, e uma lenda comum dizia que tinha origem italiana, e o apelido vinha de Espinelli. Ele foi um dos fundadores do Bloco dos Arengueiros, que depois viraria a Mangueira.

E ainda se meteu em mais um fato importante. Com Heitor Villa-Lobos, ajudou a ressuscitar uma velha tradição do Rio, que andava sumida no começo do século 20: os cordões carnavalescos, que eram reprimidos pela polícia.

A dupla fundou o Sodade do Cordão. Segundo o músico, havia uma intenção: "Animar o espírito nacionalista do nosso povo, que vem sendo dirigido de maneira patriótica pelo Estado Novo".

Para os curiosos, a voz do velho alufá está gravada em "Columbia Presents - Native Brazilian Music" (1940), produzido pelo maestro Leopold Stokowski, com músicas como "Macumba de Oxóssi" e "Macumba de Iansã". Estão na internet.

MITOLOGIA

Uma das questões ao buscar os origens do samba é que o ritmo está coberto de sua mitologia. Mesmo que ela não se sustente sempre nos fatos, não é porque algo não aconteceu que não é verdade.

"Não quero parecer o desconstrutor de mitos. Valorizo a tradição oral. O samba é um processo de criação coletiva, a arte popular não tem começo e fim. Ele é um dos elementos da aventura da nossa mestiçagem", diz Lira Neto.

De todo modo, o autor encontrou a palavra "samba" em menção anterior àquela do jornal pernambucano "O Carapuceiro", em 1838, considerada até agora a primeira.

Oito anos antes, no "Diário de Pernambuco", um texto reclamava da transferência de militares para o interior. O autor achava que, com o ócio, eles ficariam pescando e subindo em coqueiros, embalados pela viola e pelo samba.

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