Voz da França, cantora é celebrada em biografias, shows e reinterpretações
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LUCAS NEVES
DE COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS
Ao ser informado da morte da amiga Édith Piaf (1915-1963), o escritor e cineasta francês Jean Cocteau sem querer teria improvisado um epitáfio: "Nunca conheci alguém mais perdulário com a própria alma. Ela não a gastava, ela a dilapidava, atirava pela janela seu ouro".
É fato que essa voracidade emocional, regada a álcool e morfina, precipitou a deterioração física da cantora, morta aos 47 anos.
Mas também parece inegável, no centenário da artista, celebrado neste sábado (19), que a impetuosidade encarnada em músicas como "Hino ao Amor" e "Non, Je Ne Regrette Rien" deixou marca profunda na imagem que os franceses têm de seu país –e na que projetam para o mundo.
Nos concursos de calouros na TV local, as "provas de fogo" são com frequência sacadas do repertório de Piaf. Jovens intérpretes também volta e meia regravam sucessos da autora de "La Vie en Rose". Um exemplo recente é o de Zaz, a francesa que virou coqueluche indie no Brasil: em disco de 2014, fez um cover de "Sob o Céu de Paris".
"Sous le ciel de Paris
'MÔME'
Para marcar os cem anos, ao menos duas biografias estão sendo lançadas na França: "Édith Piaf - Vivre pour Chanter" (Édith Piaf - viver para cantar), de Robert Belleret, e "Édith Piaf, Dix Minutes de Bonheur par Jour, C'Est déjà Pas Mal" (Édith Piaf, dez minutos de alegria por dia não está mal), de Claude Fléouter. Além de uma antologia de cartas e de reedições.
Em 2013, no cinquentenário de morte dela, o jornal "Figaro" havia recenseado ao menos 20 relatos biográficos dedicados a ela.
No exterior, tributos às vítimas dos atentados de novembro foram embaladas por standards da "môme Piaf" (seu primeiro nome artístico; "môme" significa jovem mulher, "piaf" é gíria para pardal).
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A cantora Édith Piaf |
Céline Dion massacrou "Hino ao Amor" em premiação nos EUA; pessoas reunidas numa vigília em Londres entoaram "Non, je ne..."; e um estádio mexicano em que um atacante francês jogaria ouviu "La Vie en Rose".
A admiração estrangeira em relação à artista, no entanto, é bem anterior a isso, como atestam os covers de Louis Armstrong, Donna Summer, Grace Jones e, mais recentemente, Iggy Pop, Madonna e Lady Gaga. Um culto que a cinebiografia "Piaf - Um Hino ao Amor" (2007), premiada com dois Oscar, ajudou a renovar.
SEM FRONTEIRAS
"Ela simboliza Paris, é uma embaixadora da cidade", diz o biógrafo Belleret, que, além do novo livo, já havia lançado, em 2013, "Piaf, un Mythe Français" (Piaf, um mito francês). "Sua voz é mais importante do que a língua em que canta, desconhece fronteiras físicas e barreiras temporais. É de uma potência quase irreal."
Além dos predicados vocais, a mítica em torno de Piaf tem a seu dispor a própria vida da cantora, cheia de percalços e reviravoltas, "um misto de romance policial, fotonovela e tragédia grega", nas palavras de Belleret. Apesar dessa "matéria-prima" fértil, ela não hesitava em ornar (ou deixar que ornassem) suas anedotas de detalhes barrocos.
Assim, espalhou-se a história de que ela teria nascido na escada do prédio em que os pais moravam, em Belleville (nordeste parisiense), na volta de uma noitada de esbórnia deles. Entrada em cena triunfal, mas falsa.
Ainda na infância, ela teria passado uma semana com os olhos cobertos de terra colhida no túmulo de santa Teresa de Lisieux para tratar uma inflamação na córnea –o expediente provando-se certeiro. E tome folclore...
"Há também o mito de que ela teve atuação marcante na Resistência", afirma Belleret. "Sim, ela deu dinheiro e ajudou a esconder alguns compositores judeus no Sul, mas ao mesmo tempo se apresentava para oficiais alemães e por pouco não teve um encontro com Joseph Goebbels [ministro da Propaganda do Reich]."
O que é verdade é que Piaf era uma "serial lover", preferia paixões incandescentes a amores duradouros e se envolveu com compositores, atores e esportistas. Também é certo que seu sucesso fulgurante a partir de meados dos anos 1940 salvou da bancarrota casas de shows como o Olympia. Foi ali que Bernard Marchois, então com 17 anos, tietou a artista em 1958.
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A cantora francesa Édith Piaf ao lado do repórter Fernando de Barros, do jornal "Última Hora" |
Dezenove anos depois, ele abriria o museu Piaf, duas salinhas apertadas num apartamento perto da Belleville da cantora que concentram dezenas de objetos ligados a ela. Ali estão um dos vestidos usados no palco (invariavelmente pretos e feitos sob medida para o seu 1,47 m), luvas de boxe de um de seus affairs, o pugilista Marcel Cerdan, figurinos de filme (ela atuou em nove) e peças (duas), retratos, livros e discos.
"Ela ainda é cultuada porque cantava a vida cotidiana, malogros, alegrias e esperanças em que todo mundo se reconhece. Fazia música popular boa, quase um fado à francesa", diz Marchois, comparando-a à fadista portuguesa Amália Rodrigues (1920-99).